quinta-feira, 25 de março de 2010

2050

Suzana – Boa tarde, senhor. Eu queria dois meninos brancos, de olhos azuis, cabelos loiros e lisos.

Ignácio – Desculpe, senhora, mas este tipo eu vou ficar lhe devendo. Está em falta. É o que todo mundo quer.

Suzana – Ok, de cabelos castanhos e olhos verdes o senhor tem?

Ignácio – Só um minutinho, vou pegar o catálogo para lhe mostrar o que ainda temos disponível.

Aqui está. Humm, também estamos em falta . Disponibilidade imediata de brancos, somente com os cabelos e olhos castanhos.

Suzana – Ok, se é o que tem...

Ignácio – Mais alguma coisa, senhora?

Suzana – Sim, claro! Quero que eles tenham QI acima de 120 e já nasçam sabendo inglês e espanhol fluente.

Ignácio – Mais uma vez, sinto decepcioná-la. Que fale inglês também não temos mais exemplares disponíveis no estoque. Só por encomenda. Mas posso lhe garantir que a moda será chinês. Espanhol ainda temos alguns...

Suzana – Põe aí, “chinês e espanhol” então. Depois, eu vejo o que faço com o inglês.

Ignácio – E a área de atuação? A senhora também vai querer escolher?

Suzana – Sim. E quais são?

Ignácio – Exatas, Humanas ou Biológicas.

Suzana – Ainda existem essas áreas, é? Mas deve estar tudo diferente... Humanas, Biológicas...Bom, o que tem saído mais?

Ignácio – Exatas. Só, às vezes, em mulheres, colocando as exatas, há 1% de chance de dar errado. Mas como a senhora quer dois meninos, não tem problema. Mais algum pedido?

Suzana – Sim. Eles não podem gostar de doces, tem que ser magros.

Ignácio – Senhora, isso também tem o mesmo 1% de chance de dar errado...hein. Fiquei sabendo pelo pessoal da genética que eles injetam, na célula do futuro bebê, uma dose imensa de glicose. Assim, toda vez que a criança olhar pra um doce, ela vai querer vomitar.

Suzana – Ah, mas aí também não! E nas festas de aniversário?

Ignácio – Aí, a decisão é da senhora: ou é “brigadeiro, bolo de chocolate e bala”, ou é “salada, banana seca e frutas”.

Suzana – Mas precisa ser tão radical assim?

Ignácio – (tom calmo e explicativo) Precisa, senhora. Não dá pra colocarmos mais ou menos gordo, mais ou menos chato, a produção de seres humanos é em massa. Eles vêm de fábrica. E em fábricas, o meio termo não é permitido. O mesmo vale pro resto. Se é bom em Exatas, é péssimo em Humanas.

Suzana – Ok, ok....

Ignácio – Próximo pedido...

Suzana- Eles têm que gostar de esportes

Ignácio – Temos um probleminha aí. São dois setores diferentes: um é o de gostar de esportes; o outro, é qual esporte.

Suzana – Ah, dá muito trabalho. Vou pular esta parte, então. Eu gostaria que eles fossem fortes, mas carinhosos. Corajosos, que nunca chorassem. Sinceros. Ambiciosos na medida.

Ignácio – Isto é na outra seção, senhora. Na de sentimentos. Mas vou adiantando logo: “ambicioso na medida” não existe. Ou é ambicioso ou não é. O mesmo vale pro sincero.

Suzana – Por quê?

Ignácio – Porque já tivemos problemas. Veja bem, senhora: Eu só to querendo lhe mostrar todos os dados pra evitar reclamações futuras. Não se esqueça que o sincero fala tudo o que pensa...
Suzana – Ih, então não. Pelos menos enxergar bem... eles podem enxergar?

Ignácio – Bem, depende que tipo de enxergar.

Suzana – Como assim? Existem tipos de enxergar?

Ignácio – Ô, e como!

Suzana – Ah é? Quais tipos?

Ignácio – Enxergar por dentro, por fora, enxergar os outros, só a si mesmo... e por aí vai....

Suzana – Bem, eu não tinha pensado nisso.... Pode colocar “enxergando tudo”, então.

Ignácio – Finalizamos?

Suzana – Sabe o que é, senhor Ignácio, é que não ficou muito como eu imaginava. Vocês estão com muitas coisas em falta..E além do mais, achei que fosse mais simples, que não teria que ir em outros setores pra resolver sentimentos, por exemplo...

Ignácio – Realmente, senhora realmente. E para chegar ao resultado final, pode demorar. Para conseguir exatamente como a senhora quer, tem lista de espera de até dois anos!

Suzana – (espantada) Dois anos?!!! Não, muito obrigada. Acho que vai ser mais fácil fazer no estilo tradicional mesmo. E que venha o que Deus quiser!

segunda-feira, 15 de março de 2010

Quase nenhuma palavra


Hoje não, por favor, hoje não. Hoje não me venha com suas mentiras, não finja. Somente hoje, não finja. Fale a verdade, a sua verdade, fale sobre você. De você. Quem você realmente é. Sem construções, sem pensar. Diga que você é egoísta, ou a verdade. Somente hoje, a verdade. Diga que você não ama, diga que você odeia. Seja apenas uma vez, somente hoje, sincero. Com você. Mas não atrapalhe, não interrompa o meu dia. Não interfira no meu pensamento, no meu sentimento. No que eu sinto por você. Também quero ser igual. Egoísta. Estava tão bom o que eu sentia, o que achava que sentíamos, mas você estragou. Mentiu pra você, mentiu pra mim, não se deixou levar e me fez frear. E agora? Não adianta. Perdemos o momento. Pluft! Ele passou. Triste. Frustrante. Mas ele passou. Isso, assim, com quase nenhuma palavra: “Não, eu não vou”. A partir de então, tudo mudou. Sim, mudou. A paixão é mais efêmera do que eu podia supor.

terça-feira, 9 de março de 2010

Uma moça dizeno


Hoje chegô uma moça aqui dizeno que o nome dela era um negocio de assistente social. Ela falô, que lá no rio de janeiro tavam fazendo um troço que chamam de adoção a distancia. Eu demorei um poco pra entende, mas depois de um tempo acho que entendi. Ela disse que a gente tinha que escreve uma carta pras moça que querem adota a gente. Ela disse pra contá minha historia, que aí, você, tia, ia responde sempre, até que um dia a gente ia se conhecê. Ela disse também que você ia ajudá nós, com um dinheirinho por mês. Mas sabe que só da senhora me responde já tá bão? Se bem que pensano bem, acho melho não, o dinheirnho tem que chegá mermo, assim, eu trabalho menos pra esses homi nojento.

i gente, acho que estiquei demais. Peraí que vo lá pergunta pra assistente social, quantas linha pode escreve. Voltei, a outra tia disse que eu posso quantas eu quisé.

Eu tenho 12 ano, desde que tenho 7 que minha mãe começo a mandá eu trabalha, pros homi que param aqui no posto do lado do barraco que a gente mora. Eu tenho vergonha de falá o que eu faço, mas acho que a tia vai entende, já que a tia mora no rio de janeiro, uma cidade tão grande, cheia de gente inteligente, como é esse cristo aí, eim? Tenho tanta vontade de conhecê, parece tão bunito. Eu sô feia, queria se bunita como as menina do rio de janeiro, que aparece na novela. Elas estão sempre rindo, né, tia. É, quando dá eu gosto de vê as novela. Mas também gosto de lê. Minha mãe não sabe. E eu quando crecê, não quero sê ingual a ela. Vive bêbada aqui nesse bar. Sabia tia, que outro dia, ela me troco por quatro cerveja? Fiquei com tanto ódio... queria enfia uma faca nela, que nem ela diz que fez com meu pai, quando ele tento mata ela, numa briga que tiveram, quando eu era neném ainda mas também não sei se queria conhece ele. Tenho tanto nojo de homi.. mas então eu aprendi a escreve, com um moço, ele foi o único homi bom comigo. Ele é dono do bar onde minha mãe bebe. Eu copiava as palavra das revista de outra moça que também bebe lá e ele me explicava um poco como que eu fazia pra formá as palavra. Mas eu quero melhorá. Não quero ficá ingual a minha mãe.

Um dia eu queria conhece a senhora, tia. Queria conhece o rio de janeiro e saí dessa vida aqui. A senhora vem me visitá? Tomara

Um beijo,

dayenne

Por quatro cerveja


Hoje minha mãe me trocou por quatro cerveja. Isso aqui é que nem um inferno! Como eu queria sair disso. Eu tenho 12 anos e desde os sete que trabalho pra esses homi nojento, minha mãe diz que se eu não fizer isso, vamu morre de fome. Mas hoje foi o pior dia. Eu sempre achei que era pra não sentir fome, mas hoje que eu vi que ela me ofereceu por quatro cerveja. Eu vi que na verdade ela tava mentindo. Já tive vontade de fugi, mas nunca sei pra onde.

Uma vez eu levantei de noite e sai andando por ai, minha mãe pensou que eu fosse fugi e me deu uma coça daquelas. Aí depois disso eu nunca mais tentei nada. Eu senti tanta dor no dia seguinte..Ela brigou mais ainda comigo porque ia ser um dia sem trabalho e sem ganhar dinheiro, já que nenhum dos caminhoneiros ia querer uma mulher como eu, com tanto roxo pelo corpo. Feia eu já sou. Cheia de roxo ia ser pior ainda. A porta aqui do quarto tá encostada e sei que mais tarde eles vão chega. Hoje não é só um. Acho que vai ser quatro, ja que ela ganhou quatro cerveja. Tô com mais medo ainda. Como eu odeio tudo isso, muito. Um dia ainda vou sair daqui. E vou ser como as mulheres da TV, daquelas novelas, que estão sempre rindo. Ou vou viajar pro Rio de Janeiro, lá as menina são felizes e minha mãe pode morre que não vo ter pena nenhuma.