segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sombras do Mundo II


Ela – Ah não, você está de sacanagem. Eu cheguei aqui tem três anos já. Estou muito bem sozinha, não preciso da companhia de ninguém.


Ele – Ué, minha querida, eu só apareci porque você me trouxe.

Ela – Eu te trouxe?!

Ele – Trazer, de verdade, não trouxe, eu sou só uma conseqüência... Uma vez que você escolhe um corpitio eu posso acabar aparecendo...

Ela – Quando eu nasci não me disseram nada disso. Se eu soubesse, nem começaria a trabalhar. Gosto de fazer meu serviço sozinha.

Ele – Sozinha? É piada, né? Você sozinha não é nada. Pelo contrário, só se aproveita das fraquezas dos outros.

Ela – É o que fazem os chefes...

Ele – Você não se preocupe que eu não vou tirar seu lugar, não. No máximo, vou ser um empregado seu.

Ela – Até parece... você vai encurtar o meu trabalho.

Ele – Deixa de ser ambiciosa... Você já trabalha com tanta gente... Vai ficar brigando por uma pessoa só?

Ela – Eu? Ambiciosa? Você trabalha com muito mais gente que eu...

Ele – Não trabalho, não. É diferente. Eu ajo muito mais rápido que você, aí acaba sobrando bem menos gente.

Ela – Eu não tenho nada a ver com isso. Ninguém mandou ser tão sorrateiro. Se fosse que nem eu, desse sua cara logo, isso não ia acontecer.

Ele – Mas aí eu ia ficar igual a você e eu gosto de originalidade.

Ela – Então, você fica com a sua originalidade e vai se retirando daqui.

Ele – Agora não dá mais. Já cheguei há muito tempo. Na verdade, pouco depois de você. É que, como sempre, só descobriram agora. Tarde demais.

Ela – Não pode ser. Como eu não percebi?

Ele – Isto é sinal de que meu trabalho está cada vez melhor.

Ela – E eu achava que eu que era a má da historia.

Ele – Você é bem pior do que eu. Eu, pelo menos, não faço as pessoas com quem eu trabalho sofrerem. Você não. Fica enrolando, enrolando... deixa que vivam até dez anos ou mais...

Ela – Ué, o que o povo quer não é viver? Eu deixo eles fazerem o que eles quiserem.

Ele – Você deixa a galera que tem grana fazer o que eles quiserem, porque quem não tem se ferra.

Ela – E com você? É diferente?

Ele – É, comigo não tem conversa, não. Na maioria das vezes, eu chego quebrando tudo logo.

Ela – Que mentira... A galera que tem grana sobrevive muito mais.

Ele – Tá bom, tá bom, concordo. Então, quer dizer que somos parecidos, não acha?

Ela – Não, eu não tenho nada a ver com você. Você deixa as pessoas feias.

Ele – Não sou eu que deixo. São os remédios. E você as deixa lindas, por um acaso?

Ela – Não, mas os remédios que são usados contra mim, ajudam a disfarçar. Não adianta tentar me comparar com você. Pra começar, pra viver comigo, antes de tudo, as pessoas precisam ser pacientes. Eu ajo com calma, sem pressa... Mas com você, não. Como você mesmo disse, chega quebrando tudo logo. Além do mais, meu querido, as pessoas querem que eu esteja ali. Mesmo não gostando de mim. Existe coisa melhor do que isso?

Ele – Como assim, te querem? Todo mundo te odeia, você é o mal da humanidade.

Ela – Exatamente, o mal da humanidade. E você? O que é? Nada. Se você não chega com força total, facilmente é destruído. Se eu chego, passo a fazer parte da vida de alguém. Não tem como me destruir. Então é melhor que a pessoa fique comigo. Caso contrário, é pior, né? Eu só vou me separar da pessoa, quando ela estiver lá do outro lado.

Ele – Isso é questão de tempo. Um dia, ainda vão descobrir como te destruir.

Ela – Será? Eu já tenho trinta anos. E, com tanta tecnologia, experiência e bla, blá, blá, ainda não descobriram o jeito de fazerem isso?

Ele – A gente move uma indústria econômica, né, minha, cara?

Ela – É, e que indústria!

Ele – Pô, mas tá complicado pro meu lado sabia? Já destruíram o pessoal do pulmão esquerdo. Esses tratamentos estão cada vez mais potentes.

Ela – Nem me fala! E esses remédios que ela insiste em tomar todos os dias pra disfarçar que eu tô aqui. Isso me faz um mal.... Me sinto super fraca cada vez que ela coloca aquele bando de remédio na boca.

Ele – Isso não é nada, a guerra contra mim é bem pior. É direto na veia. Aquelas sessões... que coisa insuportável.

Ela – Desculpe te dizer, amigão, mas acho que você não dura muito não, hein?

Ele – Vou durar sim, você vai ver. Posso até sumir por uns tempos, mas depois eu volto.

Ela – Se é pra voltar, pra que sumir, então?

Ele – É que, às vezes, aqueles remédios vêm com tanta força que eu não consigo resistir. Aí, dou uma passeada, descanso um pouco, pra voltar a trabalhar com força total.

Ela – Então, quer dizer que você enche de esperança o pobre coitado do corpo onde você está, pra depois voltar? Isso é que eu chamo de maldade.

Ele – Ué, se ele não lutasse tanto contra mim, talvez fosse menos doloroso.

Ela – Dizem que isso se chama instinto de sobrevivência.

Ele – Instinto de sobrevivência?... Se o doente não tem nem como se manifestar?

Ela – Como não tem?

Ele – Ele pode optar por se cuidar ou não.

Ela – Convenhamos que não é muito uma questão de opção, não é mesmo? Trabalhei com muitos que queriam partir, e a família insistindo pra que eles ficassem. Acho que, no final das contas, é a família que decide se o doente vai viver ou não com a gente.

Ele – Me desculpe, mas aí eu discordo. A família tem muita importância, é claro. Mas se o doente não quiser, ele também não sobrevive.

Ela – Basta ele querer então?

Ele – Não digo que sobreviva, mas que ajuda, ajuda. Pelo menos por mais tempo. Nos casos em que o próprio corpo me chama, aí sim, é mais complicado.

Ela – Deixa de ser prepotente. Vai dizer que te chamam? O que as pessoas querem é distância da gente.

Ele – Conscientemente, né? Aí ficam com essas paranóias. Não pode comer uma coisa. Tem que se encher de outras porque previne isso e aquilo. Mas sabe que são essas pessoas as que mais me chamam? Elas podem ter a melhor dieta do mundo. Estar lindas por fora. Não adianta nada. Muitas vezes, sem saber estão me chamando de tão infelizes que são. Aí, amiga não há prevenção que não faça eu chegar e muito menos tratamento que me destrua.

Ela – É, pensando bem, acho que de alguma maneira, as pessoas acabam chamando a gente mesmo... Só no caso desse corpo aqui e de alguns outros que eu ainda fico na dúvida. Será que é inocência ou ignorância que faz eu chegar em lugares como esses em que estamos?

Ele – Acho que de alguma maneira elas sempre se ligam, né?

Ela – É. Pode ser. Tem pessoas que acham que eu nunca vou aparecer nelas. Sabe como é que é. Não se cuidam, né? Mas essa aí, dona desse corpo onde estamos, eu fiquei com pena. Se eu pudesse não trabalhar pra ela, não trabalharia. Mas foi mais de uma vez. O marido dela transava a torto e à direita com outros caras, umas putas... e ela nem desconfiava. Ele era um senhor ator. Aí, não deu outra. De uma ou um dos amantes dele, já nem me lembro de qual, eu vim parar aqui. Às vezes, eu gostaria de escolher as pessoas onde vou morar. Essa não merecia.

Ele – E alguém merece?

Ela – Alguém merece morrer?

Ele – Acho que sim. Talvez não com a gente. Mas esse foi o trabalho que nos deram. E, nas próximas décadas, serão outros no nosso lugar. Vamos fazer parte dos livros, como a tuberculose, a gripe espanhola... Agora, não cumprimos mais do que nossa obrigação...


Um comentário:

  1. Adorei esta crônica Márcia,

    muito interessante perceber como somos vulneráveis e estamos a merce das doencas e dos Lobis da Indústria Farmacêutica...a descoberta da cura do câncer e da AIDS já foi encontrada há muito tempo, mas nao é do interesse deles estragar o lucro de bilhoes da Industria Farmacêutica ...

    Muita talentosa com a caneta vc viu??!!!

    beijos
    Cris (da Alemanha)

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